Postado em 5 de novembro de 2012 por Juremir Publicado em Política
CUBA, O INFERNO NO
PARAÍSO - Juremir Machado da Silva
Correio do Povo,
Porto Alegre (RS), 4 de março de 2001
Na crônica da
semana passada, tentei, pela milésima vez, aderir ao comunismo. Usei todos os
chavões que conhecia para justificar o projeto cubano. Não deu certo. Depois de
11 dias na ilha de Fidel Castro, entreguei de novos os pontos.
O problema do
socialismo é sempre o real. Está certo que as utopias são virtuais, o
não-lugar, mas tanto problema com a realidade inviabiliza qualquer adesão.
Volto chocado: Cuba é uma favela no paraíso caribenho.
Não fiquei
trancando no mundo cinco estrelas do hotel Habana Libre. Fui para a rua. Vi,
ouvi e me estarreci. Em 42 anos, Fidel construiu o inferno ao alcance de todos.
Em Cuba, até os médicos são miseráveis. Ninguém pode queixar-se de
discriminação. É ainda pior. Os cubanos gostam de uma fórmula cristalina: ‘Cuba
tem 11 milhões de habitantes e 5 milhões de policiais’. Um policial pode ganhar
até quatro vezes mais do que um médico, cujo salário anda em torno de 15
dólares mensais. José, professor de História, e Marcela, sua companheira, moram
num cortiço, no Centro de Havana, com mais dez pessoas (em outros chega a 30).
Não há mais água encanada. Calorosos e necessitados de tudo, querem ser
ouvidos. José tem o dom da síntese: ‘Cuba é uma prisão, um cárcere especial.
Aqui já se nasce prisioneiro. E a pena é perpétua. Não podemos viajar e somos
vigiados em permanência. Tenho uma vida tripla: nas aulas, minto para os
alunos. Faço a apologia da revolução. Fora, sei que vivo um pesadelo. Alívio é
arranjar dólares com turistas’. José e Marcela, Ariel e Julia, Paco e Adelaida,
entre tantos com quem falamos, pedem tudo: sabão, roupas, livros, dinheiro,
papel higiênico, absorventes. Como não podem entrar sozinhos nos hotéis de luxo
que dominam Havana, quando convidados por turistas, não perdem tempo: enchem os
bolsos de envelopes de açúcar. O sistema de livreta, pelo qual os cubanos
recebem do governo uma espécie de cesta básica, garante comida para uma semana.
Depois, cada um que se vire. Carne é um produto impensável.
José e Marcela,
ainda assim, quiseram mostrar a casa e servir um almoço de domingo: arroz,
feijão e alguns pedaços de fígado de boi. Uma festa. Culpa do embargo
norte-americano? Resultado da queda do Leste Europeu? José não vacila: ‘Para
quem tem dólares não há embargo. A crise do Leste trouxe um agravamento da
situação econômica. Mas, se Cuba é uma ditadura, isso nada tem a ver com o
bloqueio’. Cuba tem quatro classes sociais: os altos funcionários do Estado,
confortavelmente instalados em Miramar; os militares e os policiais; os
empregados de hotel (que recebem gorjetas em dólar); e o povo. ‘Para ter um
emprego num hotel é preciso ser filho de papai, ser protegido de um grande, ter
influência’, explica Ricardo, engenheiro que virou mecânico e gostaria de ser
mensageiro nos hotéis luxuosos de redes internacionais.
Certa noite, numa
roda de novos amigos, brinco que, quando visito um país problemático, o regime
cai logo depois da minha saída. Respondem em uníssono:
Vamos te expulsar
daqui agora mesmo. Pergunto por que não se rebelam, não protestam, não matam
Fidel? Explicam que foram educados para o medo, vivem num Estado totalitário,
não têm um líder de oposição e não saberiam atacar com pedras, à moda
palestina. Prometem, no embalo das piadas, substituir todas as fotos de Che
Guevara espalhadas pela ilha por uma minha se eu assassinar Fidel para eles.
Quero explicações,
definições, mais luz. Resumem: ‘Cuba é uma ditadura’. Peço demonstrações: ‘Aqui
não existem eleições. A democracia participativa, direta, popular, é uma
fachada para a manipulação. Não temos campanhas eleitorais, só temos um
partido, um jornal, dois canais de televisão, de propaganda, e, se fizéssemos
um discurso em praça pública para criticar o governo, seríamos presos na hora’.
Ricardo Alarcón
aparece na televisão para dizer que o sistema eleitoral de Cuba é o mais
democrático do mundo. Os telespectadores riem: ‘É o braço direito da ditadura.
O partido indica o candidato a delegado de um distrito; cabe aos moradores do lugar
confirmá-lo; a partir daí o povo não interfere em mais nada. Os delegados
confirmam os deputados; estes, o Conselho de Estado; que consagra Fidel’. Mas e
a educação e a saúde para todos? Ariel explica: ‘Temos alfabetização e
profissionalização para todos, não educação. Somos formados para ler a versão
oficial, não para a liberdade.
A educação só
existe para a consciência crítica, à qual não temos direito. O sistema de saúde
é bom e garante que vivamos mais tempo para a submissão’. José mostra-me as
prostitutas, dá os preços e diz que ninguém as condena: ’Estão ajudando as
famílias a sobreviver’. Por uma de 15 anos, estudante e bonita, 80 dólares.
Quatro velhas negras olham uma televisão em preto e branco, cuja imagem não se
fixa. Tentam ver ‘Força de um Desejo’. Uma delas justifica: ‘Só temos a macumba
(santería) e as novelas como alento. Fidel já nos tirou tudo. Tomara que nos
deixe as novelas brasileiras’. Antes da partida, José exige que eu me
comprometa a ter coragem de, ao chegar ao Brasil, contar a verdade que me
ensinaram: em Cuba só há ‘revoltados’.