Diário do Comércio, 6 de março de 2006
Até o começo dos anos 90 ainda era
possível acreditar, honestamente, que a Nova Ordem Mundial que se
formava ante os olhos de todos após a queda da URSS era, em essência, a
mundialização do poder americano, a realização dos sonhos mais
ambiciosos dos imperialistas do Norte.
Todas as aparências indicavam isso, e
estudiosos tão isentos de viés esquerdista como o Pe. Michel Schooyans e
o historiador espanhol Ricardo de La Cierva afirmavam categoricamente
que a ONU, governo mundial em germe, não era senão a expressão e
instrumento do Estado americano ampliado à escala global.
Hoje, quem quer que continue acreditando
nisso, depois de tudo o que aconteceu nessa década e meia e com todas
as informações que se tornaram acessíveis a respeito, é um autêntico
homem de Neanderthal, se não for seu antepassado mais próximo, o dr.
Emir Sader em pessoa.
Na visão dessas criaturas primevas, a
Nova Ordem Mundial é o bom e velho imperialismo americano que, mal
camuflado, estende suas asas sobre o globo terrestre, pondo em risco a
soberania das nações pobres, cuja esperança então se volta para os
poucos núcleos de resistência espalhados pelo mundo, como Cuba, a Coréia
do Norte e os terroristas islâmicos, bravos pigmeus em luta contra o
gigante, à imagem e semelhança da Princesa Léa e Luke Skywalker
enfrentando aos trancos e barrancos as tropas imperiais sob o comando de
Darth Vader (não inventei a comparação; ela já se tornou um lugar-comum
do imaginário esquerdista).
Hoje em dia, o material disponível com
as provas cabais de que não é nada disso que está acontecendo é tão
vasto, tão abundante e tão consistente, que a única desculpa razoável
que alguém pode apresentar para continuar apegado a essa idéia é ser
pessoalmente o dr. Emir Sader e nada poder fazer contra tão cruel
destino. Todos os demais são culpados de negligência proposital.
Digo isso com a ressalva de que, as
informações pertinentes sendo talvez menos acessíveis no Brasil do que
em qualquer outro lugar do mundo com exceção dos países islâmicos e
comunistas, a ignorância geral dos fatos explica a subsistência
residual, neste país, de lendas e estereótipos já desmoralizados pelo
tempo e em toda parte.
Mas mesmo ignorantes profissionais não
podem ter deixado de notar, nos últimos anos, o conflito aberto entre a
ONU e os EUA, seguido de uma explosão mundial de anti-americanismo,
cujas manifestações nas ruas e na mídia, simultâneas, súbitas e
organizadíssimas, não poderiam ter surgido do nada, sem longa e
dispendiosíssima preparação secreta. De repente, os pobres e
esfarrapados tinham a seu serviço o New York Times, o Washington Post,
a CBS, a CNN e praticamente todo o restante da grande mídia
internacional (a brasileira, então, nem se fala), enquanto os ricaços
imperalistas mal conseguiam uma entrevistinha na Fox, uns minutos no
programa de rádio do Rush Limbaugh, sem a menor repercussão fora dos
EUA, e dois parágrafos em sua defesa na coluna da Mary O’Grady no Wall Street Journal .
A desproporção contrastava tão dramaticamente com a visão convencional
dos coitadinhos em luta contra as forças tentaculares do império
financeiro intergalático, que parecia mesmo a coluna do dr. Emir, “O
Mundo pelo Avesso”.
Para quem ainda tivesse alguma dúvida,
bastava, para eliminá-la, olhar a lista dos financiadores da gritaria
anti-americana, entre os quais brilhavam, junto com George Soros, as
fundações Ford e Rockefeller e outras fortunas do mesmo porte. Depois
disso, só mesmo o cérebro geneticamente lesado dos apreciadores daquela
coluna poderia, imune ao gritante paradoxo, continuar acreditando
piamente na identidade de americanismo e globalismo. Nem falo dos
discípulos do sr. Lyndon La Rouche, os quais, admitindo o paradoxo,
tentavam explicá-lo como rebuscado truque do maquiavelismo ianque, como
se rebuscada não fosse antes essa explicação e como se atrair todos
contra si fosse astúcia digna do governo americano e não, mais
apropriadamente, do saudoso Chapolín Colorado.
Não obstante, a afirmação absoluta dessa
identidade é não apenas a crença unânime do esquerdismo local, para o
qual ela tem ao menos a utilidade de fomentar o ódio ao seu inimigo
tradicional, mas é também o fundamento de uma “nova doutrina militar
brasileira” que vem se esboçando desde os anos 90, firmemente empenhada
em criar, com base em informação deficiente, uma estratégia desastrosa
que arrisca fazer das Forças Armadas brasileiras, amanhã ou depois, o
instrumento servil da revolução continental, seja como aliadas da
esquerda lulo-chavista que tanto as difamou e humilhou ao longo das
décadas, seja, na melhor das hipóteses, como suas concorrentes na
liderança do anti-americanismo nacional.
Essa visão das coisas não expressa
nenhuma realidade objetiva; expressa apenas, indiretamente, o estado de
total alienação da elite falante brasileira, separada do mundo por um
muro de fantasias obsessivas e complexos incapacitantes, agravados por
uma indolência intelectual verdadeiramente criminosa e pela compulsão
irresistível de complicar ainda mais as coisas tentando mostrar boniteza
em vez de exercer a única virtude que, numa hora dessas, poderia ser
salvadora: a sinceridade.
Se entre todos os políticos, oficiais de
alta patente, grandes empresários, professores de universidade,
juristas e economistas de uma nação não se encontra um só que seja capaz
de descrever corretamente o estado de coisas no mundo e enquadrar nele a
posição do país – e a realidade é que não se encontra praticamente
nenhum –, é claro que esse país está perdido e desorientado no espaço e
no tempo, condenado a erros descomunais de política externa e
administração interna que só por milagre não tornarão inviável sua
existência de Estado independente num prazo mais veloz do que a
imaginação desses indivíduos e grupos pode alcançar.
Os planos de grandeza e discursos
patrióticos que saem da boca dessa gente são um coral de marinheiros
bêbados num barco prestes a afundar. São sintomas psicóticos de uma
total falta de senso da realidade.
Na verdade, ao tentar lhes explicar que
as coisas não são como eles pensam, eu mesmo me sinto um pouco
psicótico. Esperar que entendam alguma coisa é tão louco, no fundo,
quanto apostar no futuro de um país liderado por eles. Mas, como essa
esperança se recusa a morrer, vamos lá. Vamos tentar outra vez.
Os EUA são mesmo a potência hegemônica,
mas é ridículo imaginar que todas as ações que os projetam no mundo
sejam o resultado de um cálculo unitário fundado no seu “interesse
nacional” (no sentido que o termo tem na ESG). Com mais freqüência, isto
sim, exteriorizam o conflito interno americano, conflito que, por força
da própria hegemonia dos EUA, expressa por sua vez a essencial divisão
de forças no mundo. Dito de outro modo: a política americana, o drama
americano, a guerra cultural americana, são o modelo em miniatura do
conflito global. O problema é que, entre os palpiteiros midiáticos,
acadêmicos, empresariais e militares do Brasil, ninguém entende
coisíssima nenhuma do que acontece nos EUA, portanto enxerga menos ainda
o que se passa no mundo.
Duas visões padronizadas, ambas falsas e
profundamente idiotas, se alternam no imaginário nacional como
pretensas descrições do cenário americano:
Visão 1 – As duas correntes em disputa
ali são apenas duas faces da mesma moeda imperialista. Nos EUA não
existe esquerda politicamente atuante, apenas uma direita capitalista
durona e outra mais molinha.
Visão 2 – Existem, sim, uma direita e
uma esquerda: a direita, republicana, é fundamentalista, imperialista e
militarista, representando os interesses calhordas da elite financeira e
industrial: a esquerda, democrata, representa os pobres e oprimidos do
mundo, os direitos humanos, a democracia iluminista e, enfim, tudo o que
é lindo desde o ponto de vista do Fórum Social Mundial.
Quanta besteira, porca pipa!
A divisão americana, em primeiro lugar,
não é entre republicanos e democratas. É entre conservadores e
globalistas. Estes estão nos dois partidos, os primeiros estão em parte
no republicano, em parte órfãos de agremiação partidária, sem por isto
deixar de constituir uma força política e cultural considerável.
O programa globalista, longe de ser
imperialismo americano, consiste essencialmente em quebrar a soberania
dos EUA, submetendo cada vez mais o país a organismos internacionais,
sendo necessário, para esse fim, diluir a cultura e a identidade
nacionais numa pasta “multiculturalista”.
O globalismo não tem finalidades
essencialmente econômicas ou mesmo político-militares: é todo um
conceito integral de civilização, uma verdadeira mutação revolucionária
da espécie humana, incluindo a total erradicação das religiões
tradicionais ou sua diluição numa religião biônica universal cuja
expressão mais visível é o movimento da “Nova Era”. Seus ideais são tão
opostos aos valores e interesses da nação americana que os
conservadores, sem pestanejar, os consideram inimigos tão perigosos
quanto a Al-Qaeda. Os poderosos grupos econômicos que apóiam o
globalismo são os mesmos que elegeram Bill Clinton e sustentaram a
campanha de John Kerry. Apóiam o aborto, o casamento gay, a
liberação das drogas e tudo o mais que possa dissolver rapidamente a
unidade histórica da cultura nacional americana. Fazem uso maciço do
ativismo judicial para mudar completamente o sentido da Constituição
através de sentenças que permitem o que era proibido e proibem o que era
permitido. Patrocinam maciçamente a esquerda do Terceiro Mundo e as
manifestações anti-americanas, mas, lutando para enfraquecer o país
enquanto Estado independente, buscam ao mesmo tempo fortalecê-lo como
instrumento da ONU. Daí a ambigüidade de suas tomadas de posição quanto
ao terrorismo, por exemplo.
Os conservadores, cuja base de apoio
econômico está essencialmente na prodigiosa capacidade de coleta de
fundos de milhares de organizações populares ( grassroots ),
mas que têm algum respaldo na indústria nacional acossada pela
concorrência chinesa, defendem o predomínio americano no mundo, mas não
querem a diluição do país num império transnacional. Suas ambições
“imperialistas”, incomparavelmente mais modestas que as de seus
concorrentes, consistem apenas em manter uma relativa superioridade
econômica e militar dos EUA (numa inversão patética, é este plano, e não
o globalista, que a mídia brasileira denuncia como grande perigo para a
nossa soberania). Não aceitam a ingerência de organismos internacionais
em assuntos de soberania, defendem as interpretações consagradas da
Constituição, a restrição dos poderes do governo central, o liberalismo
econômico clássico, os direitos das religiões tradicionais –
protestantismo, catolicismo e judaísmo — e a preservação da identidade
cultural americana.
Cada palavra que se ouve em debates na
mídia, no parlamento, nas universidades dos EUA, ecoa essa divisão, da
qual o Brasil em peso continua ignorando praticamente tudo, graças aos
bons préstimos de uma elite falante mentirosa, corrupta, vaidosa e
radicalmente estúpida (e não estou me referindo a governo, não; a elite
governante é só uma parcela da elite falante).
É absolutamente impossível entender o
jogo de forças no mundo – e portanto tomar uma posição consistente
dentro dele – sem ter em conta a luta de concepções civilizacionais por
trás do conflito partidário americano que a reflete de maneira irregular
e parcial. O presidente Bush, por exemplo, é moralmente um conservador,
mas atado por mil e um compromissos globalistas que tornam suas ações
freqüentemente ambíguas e não raro incompreensíveis nos termos usuais do
debate político.
Entender essas coisas dá algum trabalho,
requer muito estudo e o mergulho numa infinidade de dúvidas, mas é
imensamente recompensador para quem, com sinceridade, queira encontrar
uma esperança para o Brasil nesse mare ignotum . Em vista
disso, peço aos distintos jornalistas, empresários, professores etc.,
que, por favor, por caridade, por misericórdia, não saiam dando palpites
sobre o presente artigo antes de estudar pelo menos estes três livros:
* Carroll Quigley, Tragedy and Hope: A History of the World in Our Time,
New York & London, Macmillan, 1966. É a Bíblia do globalismo. Não
existe uma do antiglobalismo; as objeções estão espalhadas; aqui vão
duas amostras:
* Cliff Kincaid, Global Bondage: The U. N. Plan to Rule the World, Lafayette, Louisiana, Huntington House, 1995.
* Lee Penn, False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004.
* Vale a pena também examinar o artigo
de Steven Yates, “From Carroll Quigley to the UN Millennium Summit:
Thoughts on the New World Order”, em http://www.lewrockwell.com /yates/yates14.html .
Os que não quiserem ler nada disso,
então, por gentileza, queiram freqüentar a coluna do dr. Emir Sader e
continuar entendendo tudo às avessas, como já se tornou costume
nacional.