CRISE NA PREVIDÊNCIA DO BRASIL É
FORJADA! Em tese de Doutorado,
pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência no Brasil forjada pelo
governo com apoio da imprensa
16 de Janeiro de 2016
Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social – que abrange a Saúde, a Assistência
Social e a Previdência – foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No
entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras
despesas, especialmente de ordem financeira – condena a professora e
pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de
doutorado “A falsa crise da Seguridade Social
no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005” (clique e leia a
tese na íntegra).
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera
insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que,
subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre
concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
Jornal da UFRJ: A ideia de crise do sistema previdenciário
faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século
passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
Denise Gentil: A ideia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os
ataques às instituições do welfarestate (Estado de Bem- Estar Social)
tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise
econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no
meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades
ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda,
proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à
inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses
individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que
fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas
conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a
arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período
de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas
previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória
demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que
é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema
demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de
direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias
foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas
privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.
Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de crise financeira da
Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados
que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo.
Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário
não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de
1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O
cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de
contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre
a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos
trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação
simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não
são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento
da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a
CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de
concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da
Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?
Denise Gentil: Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006.
De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de
vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$
1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da
Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de
recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da
Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das
Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que
é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido
ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação
desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e
trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e
superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do
superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do
orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado
para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a
redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros,
para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao
crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa
de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e
assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de
sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de
Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão.
Isso é proposital?
Denise Gentil: Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os
que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é
parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela
Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar
à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas
sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma
sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A
visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, frequentemente isola a
Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal
localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme
argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no
mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do
Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na
invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado
proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para
o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos
aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado
excluirá a todos nessas circunstâncias.
Jornal da UFRJ: E são recursos que retornam para a economia?
Denise Gentil: É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais
que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer
dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de
alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das
mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o
emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel
importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de
menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor
se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com
Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.
Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são
exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
Denise Gentil: A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de
trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide
sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida
como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de
seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por
isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos
momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o
faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema
se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação
de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu
maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais
alto poder aquisitivo para as de menor.
Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode
lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
Denise Gentil: É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais
não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos
também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o
inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
Jornal da UFRJ: O governo não executa o orçamento à parte
para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento
geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar
outras despesas?
Denise Gentil: A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o
orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos
das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o
governo apresenta não três, mas um único orçamento chamando de “Orçamento
Fiscal e da Seguridade Social”, no qual consolida todas as receitas e despesas,
unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de
receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento
fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral
da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o
resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício
contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para
cobrir o “rombo” da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente
se passa?
Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende mudar a metodologia
imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao
que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade
Social?
Denise Gentil: Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver
um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não
pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o
resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da
Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da
seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o
efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais
transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece
inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com
previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do
campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie
de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos
sociais ainda não estão suficientemente consolidados.
Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do
Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Denise Gentil: Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre
esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da
Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo
fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da
previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for
instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível
prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se
os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa
de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em
reformas anteriores.
Jornal da UFRJ: A previdência pública no Brasil, com seu grau
de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante
como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?
Denise Gentil: Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os
desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos
mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de
redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro
anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda
mínimapara a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população
ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu
de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito
para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne
um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o
piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de
fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja
ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social
de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da
pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios
assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal
vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de
forma permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa
incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito
mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a
pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada
que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres
efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição
fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal.
Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais
de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução
pode ser captada através de certos indicadores.
Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o governo esconde, o
sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a
fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a
política econômica dos últimos anos?
Denise Gentil: A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema
previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes
de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja
risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o
país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no
mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política
econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre “crise” da
Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política
econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do
crescimento.
Postado dia 16/01/2016 por frpezzottiBlogpost opinião do cidadão
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