Jorge Béja
“Claro que me
sentia. E continuo a me sentir, mesmo sem a fantasia. Todos temos um rei dentro
de cada um de nós”. Foi a resposta que o culto e letrado carnavalesco Clóvis
Bornay (1916-2005) me deu durante o voo que nos levava a Paris, quando lhe
perguntei se ele se sentia o próprio Luis XIV, quando desfilou no carnaval
vestido de “Rei Sol”, fantasia que o próprio Bornay desenhou e fez e que foi
premiada em primeiríssimo lugar em todos os concursos daquele ano (Municipal,
Monte Líbano, Copacabana Palace, Hotel Glória…). Sem patrocínio e passado o
carnaval, ele e eu arcamos depois com todas as despesas para ir doar a fantasia
ao Museu do Louvre.
É verdade. Somos todos reis.
Somos todos majestades, ainda que em frangalhos e depauperados. Ainda que
desempregados e sem ter o que comer e onde morar, cada pessoa humana é templo
da centelha divina que a torna rei. Todos somos mesmo majestáticos.
O REI DO SUPREMO – Gilmar
Ferreira Mendes é duas vezes rei: pela própria natureza humana, como todos
somos, e pelo cargo que ocupa e exerce, o de ministro da mais alta Corte de
Justiça do país. Gilmar tem cetro de rei (a caneta), vestimenta de rei (a
toga), corte de rei (o prédio do Supremo Tribunal Federal) e o poder absoluto
de um rei, que é o de dar a palavra final sobre o destino e o direito de seus
súditos (o povo brasileiro e suas instituições).
Por certo lapso temporal, tem
vezes que Gilmar reina sozinho, por meio do poder monocrático. Depois é
obrigado a reinar em conjunto com outras 10 majestades, que são os demais colegas-ministros
que integram a Corte da qual Gilmar faz parte. Mas todos eles são reis. São
absolutos, tal como Luis XIV. A diferença é que este reinava sozinho. Acima
dele, ninguém. Abaixo, todos.
É o que acontece também com o
STF. Queiram ou não, o Judiciário é o mais forte dos três poderes da República.
Quem reina mesmo é o Judiciário, o único investido com o poder de decidir sobre
o acerto ou desacerto de todos os atos dos dois outros poderes. Também acima do
STF, ninguém. Abaixo, também todos.
NÃO PODE ERRAR – É
justamente pela majestade que detém e ostenta que Gilmar – assim como seus dez
colegas de Suprema Corte – não pode errar, ainda que seja pessoa humana e
falível. Mas nesse episódio em que sua majestade ordenou a libertação do
empresário Jacob Barata Filho, é de se sentir que Gilmar deveria se considerar
impedido ou suspeito. Ou seja, não decidir a causa.
Perguntou
Gilmar aos repórteres, sem deixar que estes respondessem ou argumentassem: “Vocês acham que ser padrinho
de casamento impede alguém de julgar um caso? Vocês acham que existe relação
íntima, como diz a lei? Não precisa responder”.
Vai aqui uma resposta, que
Gilmar dispensou que fosse dada, quando falou aos jornalistas que o cercavam.
Ei-la: juiz, padrinho de casamento de alguém, continua juiz e não perde o poder
de jurisdição, ou seja, de decidir sobre o direito do outro. Mas quando esse
alguém, esse outro, de quem o juiz e sua esposa foram padrinhos, é a filha de
um réu, cujos crimes que lhe são atribuídos compete ao juiz-padrinho julgar, aí
existe impedimento sim, Majestade.
PADRINHO-PROTETOR – O
impedimento decorre da amizade. Só quem é amigo é convidado para ser padrinho
de casamento, de batismo e até de investidura. Pessoas estranhas e sem fortes
laços de amizade nunca são chamadas para serem padrinhos de ninguém e nem de
coisa alguma. O dicionário Lello Universal define padrinho como “protetor”
(Lello & Irmão – Editores, Porto, página 858). E só dos amigos íntimos se
recebe proteção, tanto o protegido, quanto seus familiares, ao menos os
ascendentes e descendentes.
Sua afilhada Beatriz Barata é
filha de Jacob Barata Filho, que se tornou compadre de Sua Majestade. É
inimaginável um juiz decidir sobre o direito de um réu compadre seu. Nem
precisava o artigo 254, I, do Código de Processo Penal indicar que a amizade
íntima é motivo para que um juiz se dê por suspeito. E não se dando, tal como
Sua Majestade não se deu, poderá ser recusado por qualquer das partes.
SOBRINHO DA MULHER – E ainda tem
mais. Lê-se que o noivo de Beatriz Barata, Francisco Feitosa Filho, é sobrinho
da doutora Guiomar Mendes, esposa de Sua Majestade, que desde então passou a
ser juiz-julgador e compadre do réu Jacob Barata Filho (a), padrinho
de casamento de sua filha Beatriz (b) e de seu noivo-marido,
sobrinho da esposa de sua Majestade, que carinhosamente o chama de “tio” também (c). Tio por
afinidade.
Não, ministro Gilmar. A
situação é intrincada. O caso é típico de suspeição, por mais que não se queira
aceitar. Elos, fortes elos de amizade se formaram quando sua Majestade se
tornou compadre da Jacob Barata Filho. Voltando ao Lello Universal, na página
270, ao lado do substantivo “compadre” está escrito “amigo íntimo”, entre
outras definições, tais como “cada uma das pessoas que entram num conluio”.
Tudo isso é muito feio. Nada tem de nobreza. E é nobreza que se espera, que se
pede e de que se fala.
O
sentimento de majestade que Bornay sentia quando vestido de Luis XIV era pura
ficção. Era imaginativo. Era criativo. A Majestade que recai sobre sua pessoa,
ministro Gilmar Ferreira Mendes, é real, é concreta, é para valer.
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